Pedras Sagradas e as Histórias Mutantes do Islã – Peter Townsend

(22/11/2025)

Como os antigos rituais pagãos moldaram o coração do culto muçulmano.

A Kaaba, localizada na moderna Mecca, é um dos locais mais sagrados do Islã, reverenciada como a Casa de Allah e o ponto focal da peregrinação muçulmana (Hajj). A tradição islâmica, conforme articulada no Corão e nos hadiths, associa a Kaaba aos profetas Abraão e Ismael, alegando que eles a construíram como um santuário monoteísta (Corão 2:125–127).

No entanto, muitos historiadores questionam se a atual cidade de Mecca é, de fato, o local do mais antigo santuário islâmico. Patricia Crone observa:Não há evidências de que Mecca tenha tido qualquer participação no comércio de caravanas antes do Islã, nem há menção a ela em fontes pré-islâmicas.” ¹

Yehuda Nevo também argumenta: A Mecca da tradição islâmica não está atestada no primeiro século do Islã; as fontes colocam o santuário em um ambiente geográfico bastante diferente.” ²

Dan Gibson foi além, propondo que “as qiblas e descrições textuais mais antigas se encaixam em Petra e não em Mecca”, sugerindo uma mudança posterior do local sagrado.³

Se a Mecca atual é idêntica ao santuário mais antigo, o que pode ser estabelecido com maior certeza é que as práticas que cercam a Kaaba, onde quer que ela estivesse originalmente, trazem marcas claras da antiguidade pagã.

Contexto pré-islâmico da Kaaba

Na Arábia, antes do Islã, a Kaaba era um local religioso central, mas sua veneração estava profundamente enraizada nas tradições politeístas. O próprio Corão alude a um santuário seguro (Corão 5:95–97), que a tradição islâmica identifica com a Kaaba, mas fontes pré-islâmicas sugerem que era um local de culto tribal e não um santuário monoteísta. Diz-se que abrigava inúmeros ídolos, com fontes islâmicas posteriores afirmando que havia 360 ídolos na Kaaba antes da conquista da cidade por Maomé, quando todos foram destruídos.⁴ Esses ídolos representavam divindades veneradas por tribos árabes, incluindo Hubal, Al-Lat, Al-Uzza e Manat, conforme descrito no “Livro dos Ídolos”, de Ibn al-Kalbi.⁵

A associação da Kaaba com pedras sagradas também reflete a tradição semítica mais ampla de veneração da pedra. A Pedra Negra, uma característica central do ritual islâmico, provavelmente se originou como um desses baetyl, comparável a outras pedras sagradas nos contextos nabateus e do sul da Arábia.⁶

Hoyland comenta: Os santuários da Arábia eram frequentemente pouco mais que recintos ao ar livre contendo uma pedra sagrada, e a Kaaba se encaixa exatamente nesse modelo.

Rituais e Continuidade com Práticas Pagãs

Muitos rituais agora associados à Kaaba no Islã, têm paralelos claros na prática pré-islâmica. O tawaf (circunambulação), o estado de ihram (pureza ritual) e a própria peregrinação não eram invenções novas do Islã, mas já eram familiares na vida religiosa árabe.⁸ Robert Hoyland aponta que os árabes pré-islâmicos praticavam a circunambulação ao redor de objetos sagrados, descrevendo-os como locais de rotação ou giro.” ⁹

A poesia pré-islâmica e tradições posteriores confirmam que a circunvalação dos santuários, a pureza ritual antes do sacrifício e as peregrinações anuais a locais sagrados eram amplamente difundidas. Webb observa: O Hajj na forma que conhecemos hoje, foi precedido por uma tradição bem estabelecida de peregrinação à Kaaba, com animais sacrificiais, raspagem da cabeça e pureza ritual, todos atestados na poesia por séculos antes de Maomé.” ¹⁰

O Corão autoriza a circunvalação ao redor da antiga casa (Corão 22:26–29), apresentando-a como uma instituição abraâmica. No entanto, as primeiras tradições muçulmanas admitem suas origens pagãs, observando que alguns convertidos hesitavam em realizar rituais como o tawaf entre as montanhas Safah e Marwah devido à sua associação com o culto a ídolos.¹¹ Da mesma forma, o sacrifício de animais e a raspagem de cabelos, centrais para o Hajj, são bem atestados em contextos pré-islâmicos.¹²

A Pedra Negra e a Veneração Pagã

A Pedra Negra oferece um dos exemplos mais claros de continuidade entre o culto pré-islâmico e o islâmico. Tocar e beijar a pedra continua sendo um ato central de devoção para os peregrinos muçulmanos, ecoando a veneração das pedras sagradas em todo o antigo mundo semítico.¹³ Os próprios estudiosos islâmicos primitivos expressaram desconforto com a prática, cientes de sua semelhança com a idolatria. Sinai comenta: A pedra negra da Kaaba não era única, mas parte de um padrão cultural mais amplo de cultos árabes das pedras, apenas posteriormente reformulado dentro do monoteísmo.“¹⁴

Conflito com Narrativas Islâmicas

A tradição islâmica associa firmemente a Kaaba a Abraão e Ismael, afirmando que eles a construíram como o primeiro santuário monoteísta. O Corão também o liga a Adão, sugerindo que foi o local de culto mais antigo da Terra (Corão 3:96). Evidências históricas, no entanto, lançam dúvidas sobre essas alegações. Joseph Witztum argumenta: “O relato do Corão sobre Abraão construindo uma casa para Allah se baseia diretamente nas tradições judaicas e cristãs da Antiguidade Tardia sobre Jerusalém, apenas realocadas para a Arábia no texto islâmico.” *¹⁵

Gabriel Said Reynolds observa de forma semelhante: “Fontes do século 5 relatam peregrinações árabes a Hebron para homenagear Abraão, mas nenhuma menciona Mecca, o que sugere fortemente que a associação com Abraão é uma construção posterior.” ¹⁶

O problema se torna mais agudo se o argumento revisionista sobre geografia for aceito. Se o santuário original ficava em Petra ou em outro local ao norte, como sugerem Gibson e Nevo, a ligação abraâmica aparece ainda mais claramente como uma reformulação teológica do que como um fato histórico.

Contexto Religioso Mais Amplo

O cenário religioso da Arábia antes do Islã não era puramente politeísta. Influências monoteístas do judaísmo e do cristianismo estavam se espalhando nos séculos que antecederam o Islã, especialmente no reino Himyarita do sul e em comunidades ligadas às fronteiras bizantinas e persas. Ahmad al-Jallad aponta que inscrições do Iêmen invocam Raḥmān, “o Misericordioso”, mostrando que “um vocabulário monoteísta já existia na Arábia antes do Islã.“¹⁷ No norte da Arábia, o nome Allah era usado na poesia pagã como um deus supremo, associado à criação e à chuva, mas só gradualmente se fundiu com ideias monoteístas. Nicolai Sinai observa: “Allah foi invocado em versículos pré-corânicos como um provedor de chuva e protetor, não como a única divindade da salvação escatológica.” ¹⁸

Foi nesse ambiente complexo, onde rituais politeístas coexistiam com correntes monoteístas crescentes, que surgiu o Islã. A Kaaba, com sua veneração da pedra, peregrinação e ritos sacrificiais, incorporava muitas práticas religiosas mais antigas. Esses foram reinterpretados sob o Islã, como culto monoteísta, mas a continuidade com a antiguidade pagã é inconfundível.

Conclusão

Se a atual cidade de Mecca foi o local original do santuário islâmico ou se essa identificação se desenvolveu posteriormente, as práticas associadas à Kaaba mostram forte continuidade com as tradições pagãs da Arábia. Veneração à pedras, peregrinação, pureza ritual e sacrifícios eram parte integrante da religião árabe muito antes do Islã, e essas práticas foram incorporadas aos rituais atualmente realizados na Kaaba. A narrativa abraâmica conferia legitimidade teológica, mas as formas de culto revelam raízes profundas na antiguidade pré-islâmica. Assim, a Kaaba se ergue tanto como um produto da continuidade com o passado pagão da Arábia quanto como uma reinvenção dentro do quadro monoteísta do Islã.

Atenciosamente,

Peter Townsend

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NOTA

O texto acima é uma tradução de um artigo publicano no site Substack, que pode ser acessado por este link.

Luigi Benesilvi

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REFERÊNCIAS:

  1. Patricia Crone, Meccan Trade and the Rise of Islam (Princeton: Princeton University Press, 1987), 134.
  2. Yehuda D. Nevo, Crossroads to Islam: The Origins of the Arab Religion and the Arab State (Amherst, NY: Prometheus Books, 2003), 91.
  3. Dan Gibson, Early Islamic Qiblas: A Survey of Mosques Built Between 1AH/622 C.E. and 263AH/876 C.E. (Vancouver: Independent Scholars Press, 2017), 83.
  4. Sahih Bukhari, trans. M. Muhsin Khan (Riyadh: Darussalam Publications).
  5. Ibn al-Kalbi, Kitāb al-Aṣnām (The Book of Idols), trans. Nabih Amin Faris (Princeton: Princeton University Press, 1952).
  6. Encyclopaedia Britannica, “Arabian Religion,” accessed August 27, 2025.
  7. Robert Hoyland, Arabia and the Arabs: From the Bronze Age to the Coming of Islam (London: Routledge, 2001), 137.
  8. Ibid., 145.
  9. Ibid., 150.
  10. Peter Webb, The Hajj Before Muhammad: The Early Evidence in Poetry and Hadith (Leiden: Brill, 2023), 42.
  11. Sahih Bukhari 2:26:710.
  12. Zuhayr ibn Abi Sulma, cited in Webb, The Hajj Before Muhammad, 57.
  13. Emil G. Hirsch and Immanuel Benzinger, “Stone and Stone Worship,” in The Jewish Encyclopedia (New York: Funk & Wagnalls, 1906).
  14. Nicolai Sinai, “Rain-Giver, Bone-Breaker, Score-Settler: Allāh in Pre-Quranic Poetry,” Journal of the American Oriental Society 139, no. 1 (2019): 41.
  15. Joseph Witztum, “Foundations of the House: Qur’an 2:127 and the Late Antique Judeo-Christian Background,” Journal of Qur’anic Studies 20, no. 2 (2018): 34.
  16. Gabriel Said Reynolds, The Qur’an and Its Biblical Subtext (London: Routledge, 2010), 97.
  17. Ahmad al-Jallad, “The Pre-Islamic Basmala: A Study of an Early Islamic Inscription,” Bulletin of the School of Oriental and African Studies 81, no. 3 (2018): 425.
  18. Sinai, “Rain-Giver, Bone-Breaker,” 44.
  19. Ilkka Lindstedt, “Christians, Jews, and Pagans in Pre-Islamic Arabia,” Arabian Archaeology and Epigraphy 34, no. 1 (2023): 21.