O outro grande e mais antigo comércio de escravos africanos, ignorado porque não faz parte das narrativas modernas – A Day in History

(27/02/2024)

O Sahara é o maior deserto do mundo e sua travessia só é possível graças a raros oásis, vitais provedores de água aos viajantes ao longo do caminho.

Para quem não foi treinado para lidar com ele, o Sahara é um lugar de morte e desespero. Isso certamente foi verdade para milhões de escravos que foram arrastados, acorrentados, por esse deserto escaldante durante mais mil anos.

Esse comércio trans-sahariano de escravos é facilmente ignorado, graças ao seu primo mais famoso no Atlântico. Mas o comércio de pessoas não livres pelo deserto foi um sistema mais duradouro e possivelmente maior, que merece muito maior atenção.

Hoje vamos analisar a brutalidade do comércio trans-sahariano de escravos e como essa instituição de escravização e sofrimento durou por mais de mil anos.

ORIGENS DO COMÉRCIO TRANS-SAHARIANO

A escravização dentro e ao redor do Sahara é tão antiga quanto a civilização. Os antigos egípcios extraíam escravos de regiões adjacentes, nos atuais Sudão e na Líbia. Mais tarde, colonizadores fenícios ao longo da fértil costa mediterrânea, mais notavelmente Cartago, estabeleceram redes de comércio de escravos, que incluíam escravos retirados de todas as áreas da bacia do Mediterrâneo.

Mas os habitantes dispersos do Sahara não conseguiam satisfazer a crescente demanda por escravos para sempre.

Em algum momento, comerciantes começaram a usar o Sahara como uma passagem para acessar e escravizar os povos da África Subsahariana.

Historiadores não sabem ao certo quem iniciou o comércio trans-sahariano de escravos ou quando começou.

Heródoto, escrevendo no século 5 antes de Cristo, descreveu um povo chamado Garamentinos, da Líbia, que supostamente usava seus carros de guerra para caçar escravos etíopes e alguns historiadores dizem que eles foram os primeiros traficantes trans-saharianos de escravos.

No entanto, não há qualquer evidência material dessas vastas redes de comércio de escravos e é mais provável que se tratasse apenas de traficantes indo mais profundamente no Sahara e não de um verdadeiro sistema trans-sahariano de comércio de escravos.

Um pequeno número de escravos da África subsahariana existia no norte da África romana por volta dos anos 300s depois de Cristo.

Obras de arte recuperadas de vilas romanas mostram figuras que parecem ser africanos negros trabalhando nos campos e caçando, mostrando que pelo menos algum comércio de escravos pelo deserto, havia naquela época.

No entanto, foi somente com a chegada do Islã e dos árabes ao norte da África, que um sistema mais amplo e sustentado de comércio de escravos, surgiu.

DESCRIÇÃO DO COMÉRCIO TRANS-SAHARIANO DE ESCRAVOS

Exércitos árabes conquistaram a maior parte do norte da África no início do século 8. O califado abássida unificado conectou o mundo islâmico, religiosa e economicamente.

Escravos logo se deslocariam ao longo dessas conexões.

Como toda grande sociedade contemporânea, o mundo islâmico tinha uma grande necessidade de escravos e logo descobriu que os berberes rurais do norte da África não eram suficientes para satisfazer as demandas de seu mundo interconectado.

Havia 6 rotas principais usadas no comércio trans-sahariano e cada uma delas era, em vários momentos, vinculada ao poder de vários reinos.

A rota comercial mais ocidental ia da atual Gana até o Marrocos e foi inicialmente estabelecida por comerciantes que trabalhavam com o império de Gana. Mais tarde, outra rota comercial da famosa cidade de Timbuktu, no Mali, vendia escravos que, em sua maioria, acabavam na Argélia, tudo sob a proteção de uma sucessão de poderosos impérios medievais, como o Império Mali e o Songhai.

O vale do Níger era uma terceira grande fonte de escravos, principalmente para a Líbia. A bacia do Lago Chad também abastecia a Líbia com escravos, principalmente por meio dos sucessivos impérios de Khanem-Bornu, na África Central.

Também havia rotas terrestres do Sudão para o Egito. E por último, mas não menos importante, um comércio significativo de escravos ao longo do rio Nilo do Sudão e Etiópia, para o Egito.

A conversão dos reinos da África subsahariana ao Islã intensificou esse comércio.

Em primeiro lugar, a conversão dos governantes e dos grupos étnicos governantes, criou uma distinção clara entre muçulmanos e não muçulmanos e os últimos podiam ser escravizados sob a lei islâmica.

Em segundo lugar, as peregrinações a Mecca incentivaram os governantes a criar rotas seguras pelo Sahara, que também serviam como avenidas para o comércio de escravos.

A escala do comércio variou com o tempo. Durante o período medieval, uma média de cerca de 10 mil escravos foram transportados pelas rotas trans-saharianas.

Esses escravos foram parar em todo o mundo muçulmano e além, no norte da África, Levante, Irã, Arábia e Anatólia.

E, por fim, especialmente durante o período Mugol, africanos subsaharianos podiam chegar até a Índia. Alguns também foram parar na Europa, principalmente na Espanha controlada pelos muçulmanos, até os europeus começarem a adquirir seus próprios escravos africanos, diretamente, a partir do século 16.

SELEÇÃO, AQUISIÇÃO E TRANSPORTE DE ESCRAVOS

Seleção, aquisição e transporte eram os pontos de partida do comércio. A lei islâmica proibia aos muçulmanos escravizar outros muçulmanos. Na realidade, isso acontecia ocasionalmente, mas não era possível criar um mercado de massa de escravos muçulmanos.

No caso do comércio trans-sahariano, os escravos eram, em sua maioria, africanos pagãos. Além da diferença religiosa, a raça também era um componente da escravidão, embora muito menos importante para o comércio sahariano do que para o comércio atlântico posterior.

Negros africanos eram chamados de Zanj ou Sudan, para diferenciá-los dos árabes ou muçulmanos do norte da África e havia uma aceitação generalizada de que a cor da pele era uma base suficiente para a escravização.

Nem todos os africanos negros envolvidos no comércio eram escravos, é claro. Assim como os europeus fizeram com a escravidão no Atlântico, comerciantes árabes dependiam principalmente dos reinos africanos nas áreas de escravidão para adquirir escravos para eles.

Estados como o Império do Mali ou o Império Kanem, subjugaram e escravizaram tribos vizinhas e reinos menores, retendo alguns dos escravos para uso próprio e vendendo outros para comerciantes trans-saharianos.

Com a conversão ao Islã de muitos desses reinos, eles acrescentaram uma justificativa religiosa para a expansão de seus impérios e a escravização de seus inimigos.

O império de Kanem e seu sucessor, o império de Bornu, eram exemplos típicos de como um estado poderia se sustentar por meio do comércio trans-sahariano.

Esses impérios se estendiam pelo Sahara central, alcançando da Líbia até ao atual Camarões, criando uma passagem confiável para o comércio de escravos.

Suas guerras e conquistas criaram muitos escravos, que podiam ser vendidos aos comerciantes árabes.

Cidades como a agora perdida Njimi, tornaram-se centros de comércio onde os escravos, juntamente com outras mercadorias importantes, como marfim e ouro, que eram comprados por comerciantes trans-saharianos.

Esses impérios também protegiam as rotas comerciais contra invasores e construíam pontos de descanso ao longo da rota para aliviar as agruras dos comerciantes que passavam, em troca da cobrança de taxas de extração e obrigações alfandegárias dos comerciantes que passavam.

A escala do comércio de escravos contribuiu para o surgimento de muitas cidades na África. Cidades como Njimi e Timbuktu tornaram-se centros importantes devido ao seu papel no comércio de escravos.

Enquanto isso, no norte da África, assentamentos como Sijilmasa, no Marrocos, Ghat, na Líbia e Asyut, no Egito, ganharam importância como mercados de escravos, trazidos pelas rotas trans-saharianas.

O transporte pelo Sahara era feito a pé em enormes caravanas, compostas por camelos, comerciantes, supervisores e escravos amarrados. Eles contavam com o conhecimento local dos berberes e de outros povos do deserto para navegar até os oásis salvadores vitais e tornavam a jornada possível.

O viajante marroquino Ibn Battuta, participou de uma dessas marchas, do Mali para o Marrocos, em 1354, na qual 600 mulheres escravas foram obrigadas a caminhar por quase 3 meses, antes de chegarem aos mercados de escravos de Sijilmasa.

Devido à exaustão, dias de calor abrasador, noites frias, suprimentos limitados e a chance de os oásis estarem secos, as taxas de baixas eram compreensivelmente enormes.

Um explorador europeu estimou, que de cada 4 escravos que iniciavam a jornada trans-sahariana, apenas um chegava ao outro lado. Nem todas as estimativas concordam com isso, no entanto, e certamente variava de acordo com a região, rota e período de tempo.

Escravos que atravessavam o Sahara Central durante o verão, deviam ter uma taxa de mortalidade mais alta do que aqueles levados do Sudão ao longo do Nilo, por exemplo. Ainda assim, como na travessia do Atlântico, uma parte substancial dos escravos teria tido um fim miserável antes de chegar ao seu destino.

Mesmo que sobrevivessem, a vida que os aguardava era geralmente de servidão e sofrimento

O principal uso dos escravos era em serviços domésticos. As elites mantinham um número de escravos para realizar tarefas diárias em suas propriedades, como limpeza, jardinagem e trabalhos serviçais. Isso era especialmente verdadeiro para as mulheres escravas, que muitas vezes acabavam em formas de escravidão sexual.

Embora a prostituição fosse desaprovada, a lei islâmica permitia a posse de “mahziyyat”, concubinas e as escravas forneciam um grande suprimento delas. Como resultado, a maioria das mulheres jovens do sistema escravagista era vendida por causa de seus corpos e para satisfação sexual dos homens da elite.

Um manual de compra de escravos do século 11, do estudioso de Bagdá, Ibn Butlan, descreve como as meninas eram vendidas selecionadas em massa. Vendedores se orgulhavam de oferecer aos clientes, meninas de todos os cantos do mundo, desde africanas subsaharianas a indianas e europeias, tudo para atender aos desejos de seus novos proprietários.

O destino da maioria dessas moças era uma vida de exploração por um baixo nobre ou agente e depois relegada a uma vida isolada num harém ou no trabalho doméstico, depois que seu senhor perdia o interesse.

O trabalho agrícola era outro destino comum dos escravos, embora a maioria fosse de homens. A Tunísia tinha uma concentração especialmente alta de mão de obra escrava trabalhando em propriedades agrícolas, mas podiam ser encontrados em lugares tão distantes quanto o Bahrein, que registrou cerca de 30 mil escravos negros em suas fazendas no décimo século.

O setor açucareiro do Marrocos também dependia da mão de obra de escravos da África subsahariana, o que levou o sultão marroquino Ahmad Almansour, a lançar uma invasão pelo Sahara para conquistar o império Songhai e assumir o controle direto das rotas vitais de escravos, que se originavam lá.

A melhor esperança para um escravo era a liberdade por alforria. Em teoria, os escravos que se convertessem ao Islã, geralmente deviam ser alforriados, embora a capacidade prática dos escravos de ter sua conversão reconhecida ou a lei aplicada não fosse tão confiável.

O TARDIO COMÉRCIO TRANS-SAHARIANO

O comércio trans-sahariano continuou inabalável durante todo o Renascimento e até mesmo no período moderno. A chegada dos europeus, pouco fez para desacelerar o comércio, pois eles, em sua maioria, abriram suas próprias redes a partir da costa ocidental, enquanto os árabes monopolizavam o comércio interno.

A abolição da escravização atlântica teve alguma influência sobre o curso do comércio trans-sahariano. O século 19, foi o mais intenso período da escravização trans-sahariana, com cerca de 1,2 milhão de escravos naqueles 100 anos.

A Grã-Bretanha usou a pressão diplomática para forçar a abolição da escravidão na Tunísia, em 1846 e os otomanos concederam alguma abolição na Líbia, na década de 1850.

Juntamente com a abolição da escravidão pela França, na Argélia, em 1848, o mercado para o comércio de escravos trans-saharianos foi severamente reduzido, mas não eliminado.

O muçulmano Império Otomano ainda permitia a escravidão na maior parte de seu território e continuou a exportar escravos para o Oriente Médio até o século 20. Mas o aumento acentuado dos preços desses escravos demonstrou o declínio do suprimento.

Enquanto isso, no Irã, a população de Teerã ainda tinha 12% de escravos negros, em 1868 e estima-se que 80 mil escravos negros ainda estavam presentes no Irã em meados do século 19.

Uma combinação de abolição e colonização encerrou o comércio trans-sahariano, gradualmente.

Mudanças tecnológicas, como a introdução de ferrovias e aprimoramento dos navios a vapor também reduziram a necessidade de vastos trens de caravanas pelo deserto.

Embora não possamos apontar uma única data em que a última caravana de escravos trans-sahariana aconteceu, é seguro dizer que qualquer comércio significativo de escravos pelo Sahara havia sido praticamente eliminado no século 20.

O fim do comércio trans-sahariano de escravos encerrou um sistema que havia permanecido ativo por mais de mil anos.

Em seu rastro, o comércio deixou uma marca indelével em suas vítimas. Reinos se ergueram e sociedades entraram em colapso diante das demandas do comércio. Milhões de pessoas foram tiradas de suas casas, e muitos deles foram castrados, impedidos de formar famílias ou comunidades que se lembrariam de sua história.

A própria escravização sobreviveu ao comércio trans-sahariano em muitos dos lugares em que ela ocorreu. Países como a Líbia, Marrocos, Mali e Niger, ainda enfrentam grandes problemas de escravidão doméstica e sexual que persistem até os dias de hoje.

Eles se juntam aos cerca de seis a 10 milhões de vítimas de uma das mais duradouras redes de comércio de escravos da história e como seus antepassados históricos, são esquecidos com muita facilidade.

A Day in History

-o-o-o-

NOTA

O texto acima foi extraído das legendas deste vídeo, publicado no Bitchute.

Tem outro artigo relacionado à escravização de africanos por muçulmanos, extraído de um vídeo de Bill Warner, chamado de “A história completa da escravização”, que pode ser lido neste link, onde também tem o link do vídeo original.

Luigi Benesilvi

-o-o-o-

Ir para a Página Principal do Blog
Bitchute: https://www.bitchute.com/channel/ZfQcA8z7Ld2O/

Youtube: http://www.youtube.com/c/LuigiBSilvi

Rumble: https://rumble.com/user/Benesilvi

Twitter: @spacelad43

Contato: spacelad43@gmail.com